Rastros

 




Rastros


Os ventos sopram fragmentos das histórias, escombros de memórias contaminando os rejuntes. Nos cantos acumulando pequenezas, aqui e acolá, reminiscências que precisam ser vasculhadas. Parte, e sempre parte, nunca inteiro, algo escorre pelas brechas e num vão algo é inventado. No final todas histórias o foram, ainda que apenas algumas legitimadas. Para tanto, pretendemos por meio desta continuar investigando as reminiscências dos rastros e ruínas que comparecem como matéria de vários trabalhos.

Através de uma metodologia que envolveu olhar para os lastros, assim como trocas com essas opacidades e porosidades, buscamos simular por meio dos mais variados procedimentos conceituais, estéticos e técnicos, um processo de expansão e exposição. Uma coisa é morar a outra é fazer aquele lugar de habitação.

Contornando aquilo que não tem nome e nem rosto tem, seguimos o rastro investigando a arqueologia da casa. Edificamos sobre o vazio monumentalidades, e sobre nós mesmos partilhando o inútil, quinquilharias. Perdemos tudo, e havíamos esquecido o quão necessário é perder.

Por tudo isso essa exposição esteve assentada no sentimento de movência de encarar o abismo, e para além das fronteiras já destroçadas do que conhecemos, enveredamos até chegar à mata branca. Seguimos os cacos, complexos sistema para a restituição de uma direção, perguntando o que nos dirão as formigas, o que estava debaixo das pedras, aos pés de mandacarus, xique-xique, unha de gato, macambiras, quiabentos.



Adriano Braga, Andresa Moreno, Gustavo Machado e Nutyelly Cena.

Leituras:

MOMBAÇA, Jota. Pornô sob os escombros: sobrevivendo ao colapso colonial. Revista Rosa #5. 2014. Disponível em: . Acesso em: 10 maio 2017.

 _______. Veio o tempo em que por todos os lados as luzes desta época foram acendidas. 2018. Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2020. 

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018.

 _______. O direito universal à respiração. In: Pandemia crítica. São Paulo: n-1 edições, 2020. Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2020.

ROLNIK, Suely. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: n-1 edições, 2018.

 


 

Clóvis Graciano

Fragmento do Monumento ao Trabalhador (1958 -1959)

10 x 18,5 x 27,1 x 20,2 cm

Acervo do Museu de Arte de Goiânia

 

Partindo de um exercício também especulativo retomamos nessa exposição um fragmento do Monumento ao Trabalhador,  recolhido pela equipe do Museu de Arte de Goiânia, em 2020, durante obras de reforma da antiga Estação Ferroviária de Goiânia.

O Monumento ao Trabalhador foi idealizado por Clóvis Graciano e projetado por Elder Rocha Lima, construído entre os anos de 1958 e 1960 na Praça do Trabalhador, Setor Norte Ferroviário. Foi pichado em 1969, durante o

 regime militar, e destruído completamente em 1980, ainda durante a ditadura. A equipe do Museu de Arte de Goiânia, no entanto conseguirá resgatar em 2020 isso que é fragmento de nossa história. O exercício imaginativo, aqui,  é também exercício de  ficcionalização, e reconto a partir do rastros da nossa memória.

Glayson Arcanjo de Sampaio (Belo Horizonte-MG, 1975)

Desenhos

Dimensões Variáveis.


Artista visual com pesquisa sobre práticas artísticas contemporâneas com ênfase nos processos de criação e procedimentos em desenho, ações, deslocamentos e intervenções na paisagem, além de assuntos relacionados à tempo, memória, vestígio e ruína. Professor na Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás e coordenador da Galeria da FAV.

Os trabalhos e projetos de Glayson Arcanjo propõem uma poética conectada às experiências sobre a paisagem por intermédio de dois indícios conceituais que reverberam por toda sua produção e que nos ajudam a pensar justamente em uma amplificação da noção de paisagem para além de sua acepção mais comum como sendo apenas uma vista de um determinado local.

O primeiro indício diz respeito à escolha do título da exposição começando com o prefixo “des” que compõe, junto com a palavra “construir”, uma ideia metafórica para enfatizar ruínas de prédios destruídos e construções abandonadas pela cidade, nas quais o artista intervém, propondo ações que marcam uma identificação simbólica com esses espaços.
O segundo aspecto é a ideia vestigial, ou seja, marcas, sinais, que, deixados ou ressaltados pelo artista, fazem parte de uma relação experiencial e ficcional, na tentativa de imaginar a vida que ali se teve, e, portanto, o que transforma esse espaço em lugar, considerando que o conceito de lugar suporta a ideia de movimento e matéria vivida.

 

 

 

Lina Cruvinel

“Pedaço de ponte”, 2022

Encáustica e óleo sobre madeira

 

Seduzida em observar cores, formas e a passagem do tempo, Lina Cruvinel se dedica à pintura. Goiana que reside atualmente na cidade de São Paulo/SP, segue com sua pesquisa pictórica sobre espaços domésticos, intimidade e arquitetura desde 2016. Como um voyeur, detém-se em observar o espaço do outro, curiosa nos costumes e acúmulos. Com a pintura, vê a possibilidade de representar a atmosfera das casas que visita, a fim de travar batalhas com as potências do invisível e construir identidades.

 

“Pedaço de ponte” é uma alegoria às pastilhas comumente encontradas em paredes e pisos de ambientes internos e externos. A materialidade da encáustica me permite criar uma pintura tridimensional e brincar com os olhos e a sensação de dúvida. São pastilhas assentadas ou é uma pintura?

 

Washington da Selva

Lastro, 2019 - 2021

Foto-transferência em cupom de registro de ponto do trabalhador

4 x 6 cm

 

Washington da Selva é artista visual e pesquisador. Possui mestrado em Artes, Cultura e Linguagens e bacharelado em Artes e Design, ambos pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Combina diferentes práticas artísticas como: fotografia, desenho, performance, webarte e processos têxteis. Filho de trabalhadores rurais, a sua pesquisa artística lida com o contraste entre a zona rural, a cidade e a cultura digital.

 

A série Lastro (2019), nasce de um  procedimento de pesquisa no qual Da Selva procura imagens relevantes à uma construção autoetnográfica, e pela falta da presença de imagens que rememoram o trabalho de seus familiares como agricultores, ele recorre a uma pesquisa em acervos digitais nacionais de arquivo fotográfico. Dentre as fotografias, o artista procurou por imagens de pessoas empunhando instrumentos de trabalho como: enxada, pá, saco, rastelo, peneira, entre outros.

Como técnica de impressão, Da Selva utiliza o solvente para transferir as imagens impressas em fotocópia a laser para comprovantes de registro de ponto do trabalhador – guardados por Da Selva de seu último emprego como trabalhador terceirizado de um museu –. Manipular o líquido químico do solvente permitiu criar interferências entre a fotografia e os comprovantes de registro de ponto do trabalhador, de forma que em alguns comprovantes criou-se o efeito de uma paisagem em dissolução.

O solvente, aplicado sobre esses registros de ponto do trabalhador, cria apagamentos e manchas que concedem um certo ar de toxicidade para a imagem – que seria ainda um elemento presente em memória, na qual os odores de agrotóxicos em plantações, em igual instância ao solvente utilizado, chega a corroer as vias respiratórias ao se inspirar o ar do ambiente rural.

Tais gestos criaram uma ecologia que permitiu ao artista trazer presente os lastros da paisagem rural, familiar à ele.

 

Império das formigas (2022)

Carimbo s/ fotografia

110 x 70 cm

 

Ana Flávia Marú

Henrique Borela

Octávio Scapin

Imagens da destruição de Goyaz (2020 - atual)

Goiânia, Goiás, Brasil

Ana Flávia Marú, Henrique Borela e Octávio Scapin. Imagens da destruição é um grupo de estudo e prática que há dois anos tem se debruçado sobre a produção de imagens, sobretudo fotográficas no contexto da construção de Goiânia, capital do estado de Goiás, nas décadas de 1930 e 1940. No caminho deste trabalho temos nos perguntado como as imagens participam da destruição do seres e se, no exercício desta questão, a fotografia poderia colaborar para inventarmos formas de sair dela? A investigação em torno da produção de imagens têm apontado uma relação de cumplicidade e implicação destas com o processo moderno-colonial de ocupação do Centro-Oeste brasileiro, construção e destruição que seguem em curso. Em fevereiro de 2022 fizemos a primeira exposição dos objetos desenvolvidos durante a pesquisa, a exposição chamou “História Natural de Goyaz” e foi feita no ateliê que abrigou a pesquisa no setor central na cidade de Goiânia

 

Marlan Cotrim

Processos arte têxtil em diálogo com o corpo. 

Bordado com linha preta em veste de tule. 

Obra vestível

Nome: Fronteira 02

 

 

Marlan Cotrim, 28 anos trans não binário natural de Goiânia GO. Inicia seu estudo nas artes aos 8 anos, quando ingressa nas aulas de ballet e jazz, sendo sua principal disciplina de estudo até os 19 anos. Durante esse tempo integra o elenco de companhias de teatro e dança contemporânea na cidade de Goiânia. Em simultâneo se interessa em figurino e maquiagem para palco, onde desenvolve projetos como figurinista e maquiagem para palco. No ano de 2013, ingressa na faculdade de Design de moda Universidade Salgado de Oliveira onde aprimora e afunila sua pesquisa em visualidades e vestuário, encontrando no tecido suporte para desenvolver estudos artísticos. No ano seguinte, se iniciam as primeiras experiências em arte têxtil. O corpo e os dilemas que marcaram sua corporeidade são reflexões fundamentais na narrativa. Hoje atua de forma interdisciplinar entre os ramos da arte têxtil, design e performance.

 

Trazer consciência ao corpo/território requer investigar não só a respeito da biologia que compõe, mas também daquilo que socialmente e historicamente representa. Das vias, travessias e atravessamentos. Neste trabalho “Corpo a dentro” me debruço sobre as rotas orgânicas e na minha corporeidade. Tão física quanto a boca, tão imaterial como a linguagem. Veias , artérias e aorta, rotas marítimas e hidrovias, processo de invasão territorial. Rio afora o sangue jorra, em segundos percorre todo o corpo, lacustre, afluente, foz e mar. E ao entender corpo enquanto território e território enquanto corpo, percorro  as vias circulatórias da nossa história apontando as invasões exploratórias que abriram feridas  que não cicatrizam. 

Corpo é memória e nele está registrado a história.

 

Matheus Pires

Vídeo
Zona Neutra, 2019. Matheus Pires. Cor. 6’ 24’’.

 

Matheus Pires (n. 1993, Brasília) trabalha com a investigação de temas como memória, política, linguagem e violência, em uma prática diversa que vai do desenho, escultura, vídeo e fotografia à performance e instalação. Sua obra comenta a aparente superficialidade do atual debate político polarizado, pensando em caminhos possíveis para além do enfrentamento de narrativas hegemônicas. Assim, investiga ideologias políticas, símbolos de poder e dissidência e as fronteiras da comunicação em diálogo com o quotidiano e o espaço de convivência cívica. Nesse sentido, caminhar é um método fundamental em seus últimos trabalhos, uma forma de investigação geopoética do espaço, das paisagens e da vida comunitária. Ironia e humor também são elementos importantes em suas práticas, assim como a abordagem autobiográfica de temas sociais e políticos sensíveis.

 

A videoinstalação ‘Zona Neutra’ é composta por três vídeos que se comportam no campo entre o registro performático e a videoarte. Eles são resultado de uma performance baseada na ação física de uma extenuante caminhada nos arredores do campo de concentração de Sachsenhausen, em Oranienburg, Alemanha. A caminhada é compreendida como uma prática de prolongada reflexão meditativa acerca dos paralelos entre a crescente retórica extremamente competente de movimentos congregados sobre a égide de uma extrema-direita, que vem se alimentando do contexto polarizado de pensamento e do ambiente pernicioso do ciberespaço, ganhando cada vez mais adesão política em vários países, como o Brasil.

Não se trata pois de uma flagrante comparação do panorama atual com a barbárie proveniente da Segunda Guerra Mundial, mas ao contrário. Trata-se de uma ênfase na infiltração sorrateira do discurso totalitário e sua condução à prática. Nos vídeos, nenhuma imagem de Sachsenhausen, apenas suas deslumbrantes paisagens adjacentes, o silêncio da floresta e o registros do percurso. Ao final do vídeo I, um trecho gravado do áudio-guia do Museu de Sachsenhausen situa o espectador territorialmente.

Sachsenhausen foi escolhido por ser um contundente símbolo dos riscos de uma histriônica polarização política como se percebe em escala global atualmente, atestando historicamente os perigos do totalitarismo, que não se distingue entre polos políticos. O próprio campo, por exemplo, fora tanto um campo de concentração Nazista – de 1936 a 1945 – como o maior campo especial do leste da Alemanha, sobre a égide do serviço secreto soviético NKWD , entre 1945 e 1950.

 

 

 

 

Rua 57, número 60

Grupo Vida Seca

 

Para pensar a Sonoplastia  da exposição chamamos o grupo Vida Seca:

Vida Seca é um grupo musical brasileiro criado em 2004 que usa materiais descartados e alternativos como matéria prima para criação de instrumentos musicais. Sua sonoridade tem como base a música popular do mundo temperada com experimentalismos. É formado pelos músicos Danilo Rosolem, Igor Zargov, Ricardo Roqueto e Thiago Verano.

A trilha sonora é inspirado em “álbum Rua 57, número 60” ,que traz uma reflexão sonora sobre o acidente com o material radioativo Césio-137 em 1987, na capital goiana.

 

Ritchelly Oliveira

“Lázaro”

Grafite e carvão sobre papel. 68cm x 50cm. 2022

 

“Lázaro” se inicia a partir do resgate da memória de infância do artista. Trabalha aqui o simbólico de uma infância onde sua sexualidade que não foi acolhida, e de como se apresenta na vida adulta. O título também traz o encontro com o divino, até onde a fé é capaz de nos sustentar em meio as inúmeras “faltas” afetivas da vida, uma vez que a construção dessa falta de afeto se deu dentro de uma dinâmica familiar religiosa.

 

Enauro de Castro

PROJETO BARREIRO: programa ambiental total, 2010-2022

 

A história do ambiente, hoje – diz Simon Schama (Paisagem e Memória) –, inevitavelmente, expõe o mesmo quadro desanimador: terras tomadas, exploradas, exauridas; culturas tradicionais que sempre viveram numa relação de sagrada reverência com o solo e foram desalojadas pelo "individualista displicente", pelo "agressor capitalista". Rompida a cosmogonia arcaica, na qual a terra inteira era tida como sagrada e o homem apenas um elo na longa cadeia da criação, tudo terminou, com alguns milênios a mais ou a menos. Entretanto, diria o critico apaixonado, precisamos de "novos mitos" para reparar os damos causados por nosso abuso despreocupado e mecânico da natureza e restaurar o equilíbrio entre o homem e os demais organismos com os quais ele partilha o planeta.

 

Contudo, somente um modo de olhar, que busca redescobrir o que já possuímos, mas que, de alguma forma, nos escapa ao reconhecimento e a apreciação, não apenas apresentar uma explicação do que perdemos e, sim, uma exploração do que ainda podemos encontrar sob a capa superficial do contemporâneo, o que equivale a perceber, intensamente, a permanência de mitos essenciais.

 

Quando um lugar, de repente, expõe suas relações com uma visão antiga e peculiar da floresta, da montanha ou do rio... como numa escavação, começando pelo conhecido, pelas camadas de lembranças e representações, até tocar a base da rocha, que formou a séculos ou até milênios, e voltando à superfície, à luz do reconhecimento contemporâneo. São esses zelosos guardiães da lembrança da paisagem – que se arraigaram de tal modo numa determinada paisagem que se tornaram seu genius locci, o "espírito do local". Muitas de nossas preocupações modernas – império, nação, liberdade, empresa e ditadura — terminam invocado a topografia para conferir uma forma natural a suas ideias, quando os imperativos do ambiente se revestem de uma aura sagrada e mítica e, segundo se diz, passam a exigir uma dedicação maior e mais firme que aquela que os hábitos da humanidade em geral proporcionam, é que a “memória” pode ajudar a restabelecer o equilíbrio.

 

Os hábitos culturais da humanidade sempre deixaram espaço para o caráter sagrado da natureza. Todas as nossas paisagens, do parque urbano às trilhas na montanha, têm a marca de nossas persistentes e inelutáveis obsessões. Não precisamos negociar nosso legado cultural ou sua posteridade, penso eu, para levar a sério os muitos e variados males do ambiente. Só temos de entender tal atitude pelo que ela de fato é: a veneração, não o repúdio, da natureza.

 

O PROJETO BARREIRO: programa ambiental total, não foi concebido como um consolo fácil para o desastre ecológico. Tampouco como uma solução para os profundos problemas que ainda atormentam qualquer democracia desejosa de reparar o abuso contra o ambiente e, ao mesmo tempo, preservar a liberdade. Como todas as histórias, esta é menos uma receita para a ação que um convite à reflexão e pretende mais contribuir para o auto conhecimento que sugerir uma estratégia de redenção ecológica. Contudo, se demonstrar que, ao longo dos séculos, se formaram hábitos culturais que nos levaram a estabelecer com a natureza uma relação outra que não a de simplesmente esgotá-la até a morte, que o remédio para nossos males pode vir de dentro de nosso universo mental comum, então este PROJETO, talvez, não tenha

sido em vão.

 

É com esse intuito, que o PROJETO BARREIRO: programa ambiental total, busca se concretizar, apropriando-se do riacho que nasce sob os alicerces do Centro Cultural Oscar Niemeyer e do MAC-GO, e propo-lo como obra de arte (read-made), por meio de uma série de ações e intervenções performáticas e audiovisuais, que visam resgata-lo dos escombros ou do apagamento provocados pela cidade em seu processo de expansão.

 

e, se a visão que uma criança tem da natureza já pode comportar lembranças, mitos e significados complexos, muito mais elaborada é a moldura através da qual nossos olhos adultos contemplam a paisagem. Pois, conquanto estejamos habituados a situar a natureza e a percepção humana em dois campos distintos, na verdade elas são inseparáveis. Antes de poder ser um repouso para os sentidos, a paisagem é obra da mente. Compõe-se tanto de camadas de lembranças quanto de estratos de rochas.

 

Esse texto, baseado em Simon Schama – Paisagem e memória – foi inspirado em Custódia Selma Sena – Sentidos do Sertão.

(https://photos.app.goo.gl/rGSJzooDjxeu6HJs9)

 

Artista: Lucélia Maciel

Torrão, 2022

Vidro, couro, terra e linha

 

Nesse pedaço de vivência, rememoro o couro que descansa, estendido sobre uma madeira que atravessa o depósito de uma parede a outra. Lá fora o céu está azul, aqui dentro turvo, feixes de luz atravessa o telhado e esbarra no couro coberto com uma fina camada de tempo. Tempo que transformou a poeira de sua superfície em barro, cobrindo quase todo o pelo existente. Entro numa alucinação silenciosa e profunda. Os meus sentidos regressam à infância, sinto a umidade do tempo, o cheiro da noite e ouço atropelos de animais. O vento varre o telhado e canta, as folhas secas dançam em círculos enquanto migalhas despencam do telhado sobre a minha cabeça. Ouço vozes de estranhos, relinchos sereno de animais que aguardam o descanso do dono, na madrugada fria. São viajantes que no Alívio pernoitam, sobre o couro que acolhe, estendido no chão.

Enveredo no movimento da memória, percorro a “mata branca” – nome dado pelos mais velhos à Caatinga, pois no período da seca, as árvores perdem suas folhas deixando a vegetação esbranquiçada com aparência de morta. A luz solar toca na pele espessa, resistente e vai alumiando as lembranças. Zanzei um tempo por lá, observei o céu azul, a vegetação, os murundus, os bichos, senti a zoada da memória, o silêncio do vento, o descompasso do tempo. Em meio aos pés de mandacarus, palmas, xique-xique, unha de gato, macambiras, quiabentos. E, tantas outras espécies de plantas espinhosas e bichos peçonhentos, estão as vacas, os bois as cabras e os bodes, comendo qualquer coisa verde entre os garranchos. Os espinhos roçam na pele que resiste ao atrito, ao sol e a seca que os tornam ásperos e rígidos, mas quando hidratados maleáveis são. Que se transformam em calçados, gibões, calças, chapéus, capangas, selas, malas, bruacas e banguês (objeto de formato retangular e com uma madeira costurada em duas de suas extremidades, como se fossem pequenas macas, usado para carregar terra e barro). Recordo que o couro se adaptava ao volume que era posto sobre o banguê, era possível ver a pressão exercida pelo peso transportado, através da dilatação do couro e da expansão exercida na costura.

O pavio da Lamparina se acende no meu íntimo, alumia o silêncio entre os cômodos da casa, que se enche de luz e afugenta a escuridão. Onde havia metal, agora há couro. Couro que ora é pele, pele que ora é couro, que cobre a lamparina, nos une, nos acolhe, nos embala, trazendo consigo o conceito de resistência, costurado pelas vivências. Couro, o tesouro da Caatinga, que cobre e protege os corpos do revés do dia a dia. Resguarda o avesso desses corpos, preservando a memória existente no íntimo de cadaum (TENÓRIO, 2020). Sendo assim, percebo a importância de guardar o avesso da nossa pele, como traz Jeferson Tenório no resgate das memórias em sua escrita. “É necessário preservar o avesso[...]. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo (TENÓRIO, 2020, p.64)”.

A lembrança busca o passado quando encontro no presente indícios da história de todos que trago comigo. Que habitaram a casa pele e continuam aqui dentro atravessando os corpos Lamparina, através do pavio que constituem o novelo da vida. Portanto, ao olhar para meu umbigo, a cicatriz da nascença, é ancestralidade que vejo. Acessar essas vivencias, a minha memória me faz entender o que sou hoje e entendo o que Paulina Chiziane (2004, p.45) traz sobre a importância de olharmos para o próprio umbigo. Para ela: “O colonizado é cego. Destrói o seu, assimila o alheio, sem enxergar o próprio umbigo”. Olhar para o umbigo é também enxergar a própria pele. E em Incursões Sobre a Pele, poema de Nei Lopes, fica evidente a importância de conhecermos nossa história para entende-la e respeitar a memória.

Caiene Rainier Laroyê

Performance
Trava de negócios, 2022.

Trava de negócios: ato fúnebre #2 é uma ex.posição da corporalidade travesti de Caiene Laroyê. 7+1 certidões de nascimento equivocadas pelo estado, na 2ª edição performática de fogo, são retificadas (como se o problema fosse da travesti) e sepultadas. Nesse ato de relembrar a todes qual o lugar historicamente relegado à comunidade trans e travesti e o vislumbre de re.nascimentos intrínsecos-cotidianos à essas vivências.

Data e horário da performance:

18/6 - 19h

Caiene Reinier Laroyê (27) é travesti, negra, interiorana, cerradeira. É professora de matemática, produtora cultural, costureira, artista da palavra. Estudante e pesquisadora na Engenharia Ambiental e Sanitária da Universidade Federal de Goiás. Reside em Goiânia há 10 anos com várias saídas nacionais e internacionais.

 

Ayana
Cachetones, 2022

 

Divina Mãe, 2022

 

Na prisão, 2022

 

Ayanna Duran

Constelação de estrelas.

Mulher indígena Puntare Para, povo Chiquitano, Paradero - Bolívia.

Educadora Social, artesã, agroecologista e militante na Coletiva de Mulheres Negras Indígenas e Quilombolas de Goiás.

Estudou Letras Português na UFG.

Começou a fazer artesanato aos 12 anos, foi absorvendo diversas técnicas. Faz parte do coletivo Tempo Eco Arte, que trabalha com a reutilização de materiais descartados, suas telas são feitas de saco de cimento e papelão. Também, desenvolve suas próprias tintas, a partir de elementos da natureza como argilas, frutos, cascas e flores.

Suas obras nascem das mulheres de dentro de si: Ancestralidade.

Através das pinturas expõe ligações fluídas de seu povo com a Natureza.


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