Elegia
Elegia:
As ‘formas-trauma’ em Carlos Ferro
Marco Antônio Vieira
As formas elegíacas são as formas de um trauma e é
como aquilo que o trauma é (nada senão o que ele produziu, seus efeitos e
reverberações), que se as vive nessa pequena e individual mostra do pensamento
escultórico de Carlos Ferro.
A concepção de Elegia, como evento
expositivo, busca fazer as formas da escultura de Ferro ressoarem no espaço do
Rumos a partir de como se articulam, para o exercício e esforço
crítico-curatorial, uma imbricação ternária, a saber, a escuta atenta do artista, aquilo que se
encerra e se desprende de sua materialidade e de como se as costuram com a
teoria, história e filosofia da arte para que produzam aquilo que encapsula o acontecimento cênico que se
nomeia Elegia e o texto que ora se lança na aventura de evocar o que a experiência
curatorial implica como vivência estética e exercício teórico e crítico.
O segundo-tempo de Elegia
É como um intricado e complexo esforço, um
exercício mesmo espiralado que Rosalind Krauss concebe seu Caminhos da
escultura moderna (2001). Enxergar no texto crítico um desenvolvimento que
se articularia analogicamente àquele que caracteriza o pensamento poético
concede a nosso empreendimento crítico-curatorial as chaves de uma aproximação.
Estar diante daquilo que propõe uma poética
configura-se como um incessante e renovado desafio, em que se tensionam
‘interpretação’, o que Gumbrecht compreende como tudo o que caracteriza uma
cultura do sentido, e experiência estética, aquilo que o teórico alemão nomeia
‘cultura da presença’ (2010).
Que o evento expositivo se situe em um
entroncamento entre a sua inalienável e intransferível fisicalidade espacial –
produtora de ‘presença’- e todo um pensamento, pesquisa e investigação que a
vinculam e ancoram em uma ‘história’ e contexto, em que o horizonte
interpretativo se delineia para artistas, curadores e observadores
(visitantes), converte isso que é a exposição em um híbrido irrecusável entre espacialidade e temporalidade. A exposição opera hesitante
entre o aqui e agora e o alhures (em outro(s) lugar(es)).
A formulação de Krauss de que ‘toda e qualquer
organização espacial traz em seu bojo uma afirmação explícita da natureza da
experiência temporal’ (Op.cit., p. 6) serve-nos de modo exemplar para o
posicionamento crítico-curatorial adotado em Elegia.
No texto original da crítica e teórica da arte
norte-americana, o entendimento da imbricação espaço-temporal no fenômeno
escultórico contradiz o tratado setecentista de Gotthold Lessing, publicado
originalmente em 1776, Laocconte – ou sobre as fronteiras da pintura
e da poesia (2011), em que, no afã de promover tipologias suficientemente
demarcáveis entre as distintas linguagens, suportes e expressões artísticas
existentes no Ocidente, Lessing atribui à escultura uma configuração
exclusivamente espacial, destituindo-a de qualquer fenomenalidade temporal.
Em Elegia, de Carlos Ferro, a concentração
nas formulações morfológicas que caracterizam os objetos que a integram
constitui-se como uma afirmação inequívoca de sua capacidade de produzir
presença para além de quaisquer sentidos que lhes pudessem ter sido conferidos
de modo a estabelecer o tipo de subserviência referencial que tende a debilitar
o impacto poético.
O que empresta à Elegia sua eficácia poética
advém do modo como se articulam as experiências vividas por seu autor e suas
ressonâncias nas formas que emergem no processo escultórico. Não se as entendem
como formas tradutórias, capazes de duplicar mimeticamente aquilo que as
inspira.
As formas de Elegia modulam-se como um mundo
outro que se instaura à margem do mundo. Elas buscam, a despeito de toda e
qualquer teorização fundamentalmente equivocada, a capacidade de ‘emoldurar’ a
experiência estética, a partir da delimitação a um só tempo simbólica e
espaço-visual em que se situam estes ‘objetos’, os quais, uma vez instalados,
iluminados e olhados, no espaço que os recebe, convertem-se em ‘momentos’ de
uma deriva do olhar.
As ‘formas-trauma’ de Elegia transportam-nos
para a instabilidade espaço-temporal de sua fabulação poética. Elegia é
o gozo das ‘formas-trauma’ de seu autor na (nossa) carne ocular. Elegia opera
assim nos interstícios ziguezagueantes que demarcam o mistério da liturgia da
arte como um teatro (lugar de onde se vê), em que o corpo ocupa um lugar
central.
As formas em Elegia, pois, plasmam e
maquinam. Oscilam entre significado e presença sem jamais ceder às falácias do
mimetismo rasteiro. Por isso, podem concentrar-se na incomunicabilidade poética
e catártica da dor.
Elegia,
à sua maneira, reclama e reivindica ‘o
direito à forma.’
As formas elegíacas e a obsessão barroquizante
Elegia articula-se
como uma investigação formal. Neste sentido, alia-se, em larga medida, à visão
modernista do triunfo morfológico calcado na especificidade mais intransferível
dos respectivos suportes e linguagens artísticos, cujo ápice e aparente ocaso se
poderiam associar ao Expressionismo pictórico norte-americano e no legado
crítico, hoje muitas vezes rechaçado de Clement Greenberg (1909-94).
Ainda que o conservadorismo greenberguiano seja de
fato criticável, sua contribuição para a compreensão de determinadas questões
concernentes à ‘forma’ é irrecusável e desempenha um papel inequívoco na
operação teórico-crítica de obras que se filiam a certas concepções ontológicas
da arte.
Em muitos sentidos, investigações
poético-morfológicas como aquela de Carlos Ferro beneficiam-se do instrumental
‘formalista’ e, como nos expõe exemplarmente Yve-Alain Bois em A pintura
como modelo (2009), cabe que se indague acerca de que espécie de formalismo
está em questão, evitando a demonização acrítica das teorizações que se
erigiram a partir de uma determinada visada interpretativa da historiografia da
arte ocidental, a qual sucede o modelo vasariano, que prega o perfeccionismo ilusionista de
extração mimética que vigora na Renascença e na Idade Clássica da Representação
( séculos XIV a XVIII), como nos ensina
Arthur Danto em O descredenciamento filosófico da arte ( 2019).
Que Danto nos possa ter conduzido à compreensão de
que tanto o modelo mimético quanto aquele da intransferibilidade essencial de
cada suporte e expressão artística não definiriam a arte não pode obstaculizar
o recurso ao arsenal operatório capaz de descrever o funcionamento
poético-retórico de incontáveis produções artísticas que se veem na cena atual
e tampouco levar-nos ao descrédito absoluto da contribuição crítica de Greenberg.
É, a partir desse horizonte epistemológico e
poético, que Elegia emerge como um evento expositivo que busca naquilo
que nos propõe Ferro, em tudo que se instala nas obras que forja, naquilo que
nos diz seu autor em torno de como experencia o fenômeno escultórico em sua
vida, em que o sujeito se afeta pelo mundo que o circunda e sua obra é,
portanto, um conjunto de efeitos que nos chegam por meio daquilo que se erige
no espaço da galeria, sua sustentação.
As formas de Elegia denotam a obsessão pela
possibilidade de o exercício de moldar ser capaz de absorver a contorção, a
(re)torção, a revolta, tudo que é convolutado, em um exercício em que se
imbricam experimentação e virtuosismo.
A vertigem do redemoinho, do vórtice, do
atordoamento e da ultrapassagem, do excesso que caracteriza o barroco e a
voluta. Parte daquilo que se vê em Elegia configura-se à maneira de
variações tipológico-poéticas de certo vocabulário atrelado ao Barroco
histórico. Estas esculturas, portanto, retêm e guardam uma espécie de memória
de formas pretéritas e Carlos Ferro as isola de modo que assumam uma função
outra, fabulada pelo artista. Os motivos do barroco são, em Elegia, sintoma
e assim disfarçam-se, ao mesmo tempo que eclodem veementes.
Elegia é
igualmente a evocação, a partir das peças que se dispõem no chão da galeria, de
um trauma que é a um só tempo remissão e colisão geológicas. O pétreo plúmbeo
que é quase simulação ilusionista em pleno século XXI.
Elegia é
uma celebração poético-litúrgica de tudo aquilo que o significante que a nomeia
é capaz de evocar historicamente sem sucumbir à obviedade mimética ou
abstrair-se do impacto catártico e corpóreo da dor do luto e do trauma.
Elegia modula-se
como uma particular forma de alegoria (VIEIRA, 2018). Sua forma, encenação e
teatralidade espaço-visuais bifurcam-se temporal e espacialmente. Sua
significação não se aparta do que produz poética e esteticamente. Ela é o
efeito do princípio estruturante do que encerra a ‘montagem’ tanto no modo como
se concebem os objetos/artefatos que a integram como naquilo que é Elegia
como cena expositiva: momento de um pensamento que se especializa com vistas a
surtir efeitos.
O ‘barroco’ é um fantasma alegórico
intertemporal.
O espaço-tempo em Elegia e o Gozo da
Linguagem
São formas tortuosas, formas torturadas, formas
retorcidas. As formas mesmo da contorção. As formas da voluta. As formas do
impossível. As formas de Elegia são desde sempre as formas da (re)volta.
(Re)tornar é um para sempre sem repouso possível. As formas que aspiram ao
elegíaco são as formas da dor, da perda, do luto, da melancolia. Formas que só
se podem pensar e conceber como as formas que oscilam fronteiriças,
titubeantes. Formas que vacilam entre o antes e o agora. Formas da memória.
Formas mnemônicas. Formas traumáticas. As formas mesmas do totem, do obelisco,
do ídolo, formas fúnebres. As formas do cenotáfio. As formas do (im)possível:
tornar presente o que não mais está exceto como função simbólica e
significante. As formas do irrepresentável exceto como triunfo daquilo que é a
forma como epifania de si mesmo e que, no entanto, é apelo e chamamento ao ato
de significar: o quê, para quem, como e onde? A exposição é isto que é a forma
de si mesmo: um paradoxo. Um oxímoro. Uma aporia. Um impasse: a forma e sua
sombra são os equivalentes mais concretos de uma tensão espaço-temporal:
presença e evocação.
O labirinto elegíaco é onde se encena a liturgia
simbólica que é a violência indizível do luto.
Referências:
BOIS, Yve-Alain. A pintura como
modelo. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
DANTO, Arthur. O
descredenciamento filosófico da arte. Tradução Rodrigo Duarte. São Paulo:
Martins Fontes, 2019.
GUMBRECHT, Hans. Produção de
presença- aquilo que o sentido não consegue transmitir. Tradução Ana Isabel
Soares. Rio de Janeiro: Contraponto, 2010.
LESSING, Gotthold Ephraim. Laocoonte-
ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia. São Paulo: Iluminuras, 2011.
KRAUSS, Rosalind. Caminhos da
escultura moderna. Tradução Julio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
VIEIRA, Marco Antônio. História(s) da Arte e o Sintoma Alegórico: por uma
releitura de Winckelmann. 239 f. Tese (Doutorado em Artes, Teoria e História da
Arte). PPG/Artes/VIS/Instituto de Artes, Universidade de Brasília, 2018.
ESCULTURAS DE PAREDE
Sem título (Série Alegoria)
2023
Escultura em madeira
30,5 X 4,5 X 22 cm
Sem título (Série Alegoria)
2023
Escultura em madeira
60 X 04 X 18 cm
Sem título (Série Alegoria)
2023
Escultura em madeira
72,5 X 04 X 18,5 cm
Sem título (Série Alegoria)
2023
Escultura em madeira
130 X 02 X 24.5 cm
Sem título (Série Alegoria)
2023
Escultura em madeira
56 X 4,5 X 24 cm
Sem título (Série Alegoria)
2023
Escultura em madeira
37 X 04 X 24 cm
Sem título (Série Alegoria)
2023
Escultura em madeira
85 X 4,5 X 24 cm
Sem título (Série Alegoria)
2023
Escultura em madeira
47,5 X 2,5 X 25,5 cm
ESCULTURAS DE CHÃO
Sem título (Série Trauma)
2019
Fibra de vidro pintada
31 X 40 X 53 cm
Sem título (Série Trauma)
2019
Fibra de vidro pintada
62 X 54 X 50 cm
Sem título (Série Trauma)
2019
Fibra de vidro pintada
45 X 58 X 50 cm
ESCULTURAS COM BASES DE CIMENTO
Sem título (Série Alegoria)
2023
Escultura em madeira
97 X 05 X 07 cm
Sem título (Série Alegoria)
2023
Escultura em madeira
98 X 4,5 X 07 cm
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