Acontecências: um ensaio contraescultórico
Capra Maia
A queda, 2023
Argila molhada sobre parede
Dimensões variáveis
Capra Maia
Sem título, 2023
Placas de barro cru
Dimensões variáveis
Marcos Antony Costa Pinheiro
Babylonia, 2023
Material: Madeira pinnus
Dimensão 130 cm 120 cm x 120 cm
As resistências
críticas da escultura
Acontecências encena um diálogo espaço-conceitual, concebido
especificamente para a o Rumos, entre os artistas Capra Maia e Antony. Seu subtítulo
‘ensaio contraescultórico’ inspira-se no prefácio escrito por
Hubert Damisch para o texto O fotográfico (2002), de Rosalind Krauss e
dilata-se para abarcar a acepção de experimento algo incerto, ‘em curso’, que
tateia e desbrava formas outras, que o
vocábulo ‘ensaio’ comporta.
Em seu texto, Damisch explora a
radicalidade do pensamento de Krauss ao aproximar-se do fenômeno fotográfico e
afirma que, em larga medida, o que ali se delineia criticamente configura-se
como um ato de ‘pensar contra’ uma determinada tradição que naturalizara a
prática e a teorização em torno da fotografia no Ocidente. Capra Maia e Antony
ensaiam acepções outras do fenômeno escultórico a partir dos trabalhos que
integram essa mostra e igualmente pensam ‘contra’ visões petrificadoras da
escultura.
Aquilo que em Acontecências se
passa com a ‘ideia de escultura’ equivale a um exercício de resistências críticas
a uma longa reiteração de princípios instalados em uma ‘ideia de escultura’,
forjada a partir de um entrelaçamento naturalizado ao longo do conjunto de
narrativas em torno do fenômeno escultórico, em que se fundem semanticamente a
indestrutibilidade (o ‘eterno’) e o desafio que a matéria, da qual depende a
eternização do monumento, impõe à ‘arte da escultura’.
A essa fusão bipartite entre o que não
se destrói facilmente e que, portanto, pode servir à perpetuação mnemônica de
um fragmento da vida e à conversão da matéria em figura totêmica ou estatuária,
o significante ‘resistência’ adere à perfeição à ideia daquilo que resiste ao
tempo e à devastação, àquilo que resiste à morte física de seus artífices, ao
mesmo tempo em que aponta para a resistência mesma que a matéria encerra para o
ato físico de esculpir.
Resistir é um movimento
constitutivamente ambíguo e é dessa ambiguidade constitutiva que o êxito, ainda
que malogrado, de seu funcionamento depende.
Nada senão a compreensão mais profunda
da resistência como inerente ao trabalho escultórico é capaz de o atualizar.
Sua atualidade é o terreno vivo povoado pelo passado de seus fantasmas. Neste
terreno fantasmal, os motivos que alimentaram a ‘ideia de escultura’ no passado
oscilam incessantes entre eclosão e retração.
Se aqui se evocam os espectros da
história, teoria e filosofia da arte de outrora é para que aquilo que se
esboça, rabisca e rascunha incerto, titubeante, vacilante em Acontecências possa
de algum modo sonhar com aquilo que a escultura ainda pode ser. O porvir da
escultura é a resistência do escultórico a despeito dessa história e por
conta dessa história.
Na história e na crítica da arte, em
que tanto se mata e tanto se cria, em que tanto se ilumina e tanto se apaga, só
a ‘ideia de resistência’ pode dar a ver, no espaço que é o campo da escultura
na atualidade em nosso país e nessa região, o que resiste da ‘ideia de
escultura’ de outrora. Sua implosão nos deixa um terreno de ruínas e a ruína é
‘um-menos de objeto que carrega um-mais de memória’ (WACJAMAN, 1998, p. 14.
Tradução nossa).
E, em muitos sentidos, a noção de
‘resistências’ se alastra para o campo da recepção e entendimento críticos que
acepções outras que desafiam a aparente solidez da escultura impõem como uma
espécie de gangorra entre o entrave e a alavanca para que o ‘contraescultórico’
possa despontar no horizonte da criação escultórica a partir de novas
proposições poéticas que deem vazão à escultura porvir, mesmo quando é
justamente aquilo de mais sólido desmancha no ar.
O paradoxo em jogo aqui é que sem
resistências, não há contraescultura possível.
Esboço de uma história do
escultórico
A escultura é uma ideia que se vincula
à imbricação entre processo e sua materialização. O ato escultórico, em larga
medida, definiu-se a partir da lida corpórea com o que da matéria pode surgir.
Não é fortuito, pois, que o ato de criação divina da espécie humana seja tão
costumeiramente convertido em narrativa dependente da conversão da matéria em
figura tridimensional animada (‘viva’) e seu simulacro pictórico é sua
derivação.
O virtuosismo encarregado de dotar o
objeto/artefato esculpido de ‘efeitos do real’, nos termos emprestados de
Aristóteles (1969), é facilmente traduzível como aquele capaz de tornar
suficientemente críveis os indícios da vida que a arte empresta ao tempo da
escultura figurativa. A matéria ‘inerte’ deveria então definir-se partir de uma
cisão temporal entre o antes e o depois daquilo que nela anima o escultórico e
aquilo que ele faz acontecer.
Quando a escultura começa a abraçar a
abstração, firma-se como presença, fisicalidade que passa a existir sem a
servilidade que a função duplicativa do mundo e sua existência se confirma como
um corpo de massas que se definem sobretudo a partir de suas volumetrias.
Desvinculado da função mimética, o
escultórico passa ao tempo da aparência de um ‘acontecimento’ matérico no
mundo. ‘Corpo’ sem inscrição que o possa situar no repertório reconhecível do
mundo, a escultura assume-se então como uma espécie de ‘aparição’ no mundo. Ela
ocupa um lugar cuja fisicalidade não se pode ignorar (não se atravessa um corpo
escultórico).
A escultura moderna aparenta
desempenhar precisamente uma função distintiva: sua aparência insubmissa aos
códigos reconhecíveis do figurativismo irrompe no mundo à maneira de um
fenômeno ou ‘acontecimento’ espaço-visual.
Em torno de Acontecências
Acontecências filia-se a uma tradição de resistências às
‘verdades’ naturalizadas de uma determinada ontologia do escultórico, em que o
escultórico se desloca do lugar em que se o havia fixado e se move no espaço,
assume-se temporal, cruza fronteiras e se contamina performativa e
conceitualmente, abraça a ‘impureza’ interartística e ressurge
reconhecivelmente infamiliar.
Acontecências é o esforço de pensar e de imaginar o tempo atual
do escultórico. Um tempo que grosso modo esculpe-se à sombra de suas
resistências pretéritas. Resistências escultóricas devedoras de proposições
poéticas de artistas associados ao minimalismo e a land art, como
Richard Long (1945), Carl André (1935) e Robert Smithson (1938-76) ao neoconcretismo
brasileiro, a partir da visada paiaagístico-arquitetônica de Hélio Oiticica
(1937-80), dos ‘trabalhos de campo’, de Tadashi Kawamata (1953), ao mesmo tempo
em que sua condição matérica extrai do entorno e vernáculos regional (Centro-Oeste)
e brasileiro sua inspiração e precariedade matéricas.
Capra Maia tem se ocupado da
investigação do agenciamento escultórico da água que, ao lapidar formas, escava
concavidades e desbasta superfícies temporalmente.
A pensá-lo nesta chave, o fenômeno
escultórico é um índice do tempo e o processo que desemboca em seus efeitos (rastros
e vestígios) é ‘obra’, componente integrante daquilo que o trabalho encerra e
seus efeitos escapam à possibilidade de que se os determinem por completo. Há
aí a intervenção, a interferência do ‘acaso’ que engendra a significação mesma
da ‘obra’, e o ocaso da certeza passada da ideia de escultura.
Para Acontecências, Capra Maia produziu
dois trabalhos. O trabalho externo compõe-se de dezesseis placas de argila crua
e seca no ‘ponto osso’ (estado da argila que não mais acomoda modificações), de
35 x 35cm cada.
Estas placas, que funcionam à maneira
de um piso de cerâmica organizado geometricamente, se dispõem em quatro blocos
compostos de 4 placas cada no jardim do Rumos.
O escultórico aqui se espacializa
rasteiro, geometriza-se rente ao solo gramíneo, resignando-se à fragilidade que
se instala no material escolhido, já que a argila de que são feitas as placas
não foi ao forno, e sua inclemente exposição às intempéries aparenta recusar a
concepção de eternidade a preservar-se.
Aceitando, ao menos visualmente, que se
ande sobre ele, que nele se pise, este trabalho de Capra Maia rompe com a ideia
de monumentalidade ereta de boa parte da escultura tradicional e assume uma
significação que acaba por apontar para uma ruptura com a hierarquização
implícita na verticalização que se desvela no ato de olhar para baixo, para o
chão, para o solo e ali deparar com uma ‘obra’.
No trabalho interno, peças de barro
imitando azulejos de 15 x 15 cm, ainda ‘molhadas’, serão ‘coladas’ à parede da
galeria. Com o tempo, as peças deverão descolar-se da parede e, a exemplo
daquilo que se passa com o trabalho externo, a ‘obra’ é aquilo que ‘acontece’
como um efeito de suas condições materiais. Há,embutido na concepção destes
trabalhos, uma complexa noção de performatividade, pois o trabalho é
‘acontecimento’ que se dá, sem a intervenção ou interferência manual e direta
da artista. A ‘obra’, nestes dois
trabalhos de Capra Maia, é o que nela ‘acontece’ ao longo do tempo do
período expositivo. A obra é um processo em curso
O ponto de intersecção visual entre os
trabalhos de Maia e aquele de Antony, intitulado Babilônia, é o vermelho
do barro que azuleja a parede de Maia e mancha a parede contra a qual emerge a
composição de Antony no interior da galeria. Conceitualmente, ainda, os
trabalhos dos dois artistas acabam por ecoar as concepções de paisagismo e
arquitetura que caracterizam uma das múltiplas facetas do trabalho de artistas
que investigam as tensões entre paisagem, arquitetura, escultura e pintura.
Como ressalta Celso Favaretto em A
invenção de Hélio Oiticica (2000), a proposta de Barracão, ideia-projeto
de Oiticica, encerra uma abertura a contingências a um só tempo
individuais e coletivas e ancora-se na favela, em seu vernáculo residencial
provisório.
Historicamente, as relações entre
escultura, arquitetura e paisagem são constitutivas e, em Acontecências,
essa ‘passeidade’ relacional é objeto de investimentos que desnaturalizam a
narrativa acomodatícia ao redor dessa aparente interartisticidade
simbiótica, desnudando sua condição de arranjo retórico, ao desestabilizar os
modos como seus códigos materiais pretéritos se atualizam de modo a surtir
efeitos de deslocamento e atordoamento.
Em Antony, as composições escultóricas
que propõe, caracterizadas por um rigor de inspiração construtivista, aparentam
irromper no espaço em que ‘acontecem’, surpreendendo quem as vê, dado que seu
rigor composicional articula-se em contraste à precariedade de sua
materialidade.
A relação tensional entre arte e
arquitetura assume uma materialização que produz de imediato uma ‘infamiliaridade
reconhecível’ como vetor poético de uma reflexão cujos contornos políticos não
se poderiam negligenciar, de vez que os ‘arranjos’ escultóricos propostos por
Antony irrompem inequívocos em sua flagrante mescla entre o controle
sintático-estrutural da composição e sua quase indigência material.
Em suas intervenções poéticas no
espaço, os trabalhos de Antony emergem na paisagem como a afirmação veemente de
sua reivindicação à existência e à visibilidade. Eclodem à maneira de ruídos
que redefinem o nosso entendimento da harmonia asséptica da paisagem gentrificada,
da qual se ausentam propositalmente o transitório, o inconstante, o acidental.
O escultórico, em seus trabalhos, assombra poeticamente a paisagem domesticada,
à maneira de irrupções disruptivas, em que se pode equacionar a força poética à
ação transformadora.
Surpreender o poético no precário é
poder, ao menos utopicamente, sonhar espacialidades-outras que possam oferecer
um contraponto à aridez e desolação visual com as quais deparamos em nossas
deambulações pela paisagem urbana de localidades periféricas, que forneceram
inspiração para a poiesis de Oiticica, Kawamata e Antony. A emergência
do escultórico como ‘Nova’ Babilônia, encruzilhada poética de uma tensão
irresolvível entre o esplendor civilizatório e sua dissolução.
A irrupção do inesperado, do
insuspeitado, do imprevisível encontra-se na base da lógica que subjaz ao
acontecimento, ao imaginarmos perambular pela cidade ou por espaços que
ignoramos e é na lógica da eclosão que se podem imaginar espaços-outros,
lugares-outros para essa contraescultura que aparenta animar as poéticas
de Capra Maia e Antony, quando se a imagina como elemento poético na paisagem.
Nos limites poéticos, o território em
que Acontecências se esculpe, o desafio à inércia histórica da matéria
escultórica se desafia, em Capra Maia, a partir da natureza processual dos
trabalhos e, em Antony, a partir de como morfologia (a gramática visual
empregada) altera relações com o espaço a partir de sua familiar estranheza,
transmutando-se em manifestação poético-ativistas.
Os trabalhos de Antony e de Capra Maia
transitam entre o recurso a uma série de efeitos composicionais que se amparam
na perspectiva pictórica do trabalho tridimensional e em sua capacidade de
perturbar a pasmaceira visual do mundo, à maneira de ‘aparições’ que instauram
descontinuidades no campo do visível.
Contraescultura, eis o nome-outro daquilo que acontece quando se
encenam as resistências críticas da tradição escultórica ocidental.
Em sua espacialidade poética, Acontecências
situa-se entre isto que foi a escultura e isto que pode ser o contraescultórico.
Referências
ARISTÓTELES. Poétique. Paris: Les Belles Lettres, 1969.
DAMISCH, Hubert. “A partir da fotografia”, prefácio. In:
KRAUSS, Rosalind. O fotográfico. Tradução de Anne Marie Davée. Editorial
Gustavo Gili, AS. Portugal: 2002. pp. 7- 13.
FAVARETTO, Celso. A invenção de Hélio Oiticica. São Paulo:
Edusp, 2000.
WACJMAN, Gérard. L’objet du siècle. Paris: Verdier, 1998.
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